domingo, 4 de março de 2012

A Inglesa, o duque e os épicos*



Falando-se em coisas virtuais e maleáveis, mundos construídos por efeitos especiais, o cinema dependente da sala e dos magos da pós-produção, pergunto: O que será do plano? O que será da unidade mínima dos filmes? O único testamento e prova, pela parcela de tempo que durar, de que o que estamos a ver é verdade. Uma personagem, ou duas ou três, não interessa, inserida num espaço. Vemos o que faz, vemos para onde olha, o plano dura o que durar para nos captar essa atenção e esse interesse, o de olhar para alguém nalgum sítio, numa dada situação. Há uma palpabilidade inerente, uma verdade, se assim se quiser dizer. Uma aproximação. Pureza, se a aproximação doer.

Falemos de épicos, por exemplo, já não podem ser (e não são, de facto) a coisa que eram. Não com multidões digitalizadas, cidades virtuais e efeitos à mistura. É mais barato fazê-lo assim, mas nunca há de ser a mesma coisa que ver centenas de pessoas dirigidas por uma equipa, seja em Ben Hur, Land of the Pharaohs, Lawrence of Arabia, entre outros, onde há uma proximidade genuína, verdadeira (um esforço titánico), em vez de uma quase que imposta e portanto falsa. Se há coisas que Lord of the Rings não tem, são batalhas. Parte da magia do épico, o épico do épico, se quisermos, era também a orquestração de cenários e multidões, para os quais eram precisas também multidões, ora pois. Já não é preciso ir para África ou para a Ásia, para quê? Filma-se em tela verde. O Coppola pode pregar quanto quiser sobre isto poder ser, finalmente, a aproximação do realizador ao escritor, o CGI como caneta, mas é a destruição de todo um pensamento, de todo um método de aproximação ao que é palpável, ao que é carnal, ao que é sincero.
 
Pôr um actor a contracenar com um pano verde é tornar a primeira verdade do plano, a do espaço, mentira. A câmara não o capta a ele (ou ela) e ao espaço, mas aos dois em separado, enfim, toda a gente sabe como funciona. Se o cinema é a única arte que se dedica à relação entre o Homem e o Espaço (herança que data já do mudo – Chaplin, Keaton) que ao menos não haja mentira nessa relação.

É ser purista, é ser atrasado. Não. Há maneira da coisa funcionar, até já se fez, mas noutra arte, o Teatro, em que a relação Homem/Espaço é já mentira, de partida - e não há, parece-me, como fugir a isso, a não ser que se jogue com o próprio contexto, no momento, in loco. A tela verde é perfeita para o teatro. É um mundo novo, à espera de ser descoberto.
 
Em L'anglaise et le duc, Rohmer prova isto, que só é possível cenários artificiais, no teatro, em que parte da interpretação do actor está em imaginar que está num dado sítio, explorando ambivalências e extremos interessantíssimos. É dos melhores usos do digital, da tela verde e dos efeitos (que, acreditem ou não, são recorrentes desde o mudo), pessoas a passear por frescos impres- sionantes, belíssimos, de um tempo longínquo, durante a Revolução Francesa. É pesado, é teatral – sem insulto algum, aqui, da minha parte – e os efeitos não são forçados.
 
L'anglaise et le duc e Lord of the Rings, teatro filmado (com as distâncias devidas), O Quinto Império e Land of the Pharaohs, cinema. Como sempre e como qualquer pessoa, acredito nisto até deixar de acreditar. É sempre tudo uma questão de fé..

*texto publicado na revista Cinergia, editada pelo João Palhares, a quem desde já agradeço o convite.