(mais um texto meu na CINERGIA)
He
said come wander with me, love. Come wander with me.. Away from
this sad world.. Come wander with me..
Bonnie Beecher, em
Come
Wander with me,
canção e episódio da Twilight
Zone
Mudar
de Vida é
o segundo filme de Paulo Rocha. Podia ter sido o primeiro, porque era
um projecto já antigo mas que não aconteceu, na altura. Só uns
anos mais tarde, depois de estrear Verdes
Anos,
é que tomou forma. Portanto talvez não faça grande sentido falar
na transição oriental
na
carreira de Rocha em Mudar
de Vida,
não só por isso mas também porque a admiração pelo oriente
era
já antiga e em Verdes
Anos
se calhar até já se sente. Mas como é de Mudar
de Vida que
aqui nos ocupamos, ocupemo-nos disso mesmo. Para acabar com a
questão, a paisagem do filme é capaz de nos remeter para o
“oriente” e há uma consciência disso por trás da câmara (ler
“na forma de enquadrar”). Os barcos no rio, a vegetação, a
neblina. Enfim, pode-se também dizer que o próprio conflito remete
para, por exemplo, um Ugetsu
Monogatari.
Para Sunrise
ou
City
Girl,
também, que são “ocidente”. Mas como é injusto para este filme
entrar em comparações destas (e nem por serem dois dos maiores
artistas do séc. XX, mais por Mizoguchi e Murnau terem na altura
desses filmes as formas resolvidas, era já um olhar sereno sobre as
coisas; Rocha começava, ainda, o olhar era jovem) escrevo sobre o
que ele conta (e conta tanta coisa).
Adelino
regressa à terra natal depois de anos sem dar ou ouvir notícias. O
tempo permite que “os seus” façam as suas vidas, que a sua
prometida, Júlia, se torne sua cunhada, que o mar avance sobre a
areia e sobre as casas e que ele pouco reconheça do Furadouro. Depois de se habituar à mudança, transita, e a paisagem acompanha-o
(repararão que a primeira metade do filme é “mar” e a segunda,
“rio”, que Adelino percorre muito discretamente essa transição,
além de chegar a dizer “eu
dantes gostava do mar e agora gosto do rio”,
a dada altura no filme). Paulo Rocha disse que o mote do filme foi
registar esse mundo antes de desaparecer e a transição está
registada e colada às personagens como dispositivo cénico. Se o mar
varreu as memórias, é preciso procurar outras – é preciso mudar
de vida -
e aí entra Albertina, a aparição angelical do filme (anjo
da guarda, salvação,
fabulosa Isabel Ruth). Cruzam destinos numa capela, pormenor que não
me parece inocente, ele lá para meditar e ela para pilhar as
esmolas. Se é ele que começa a tentar corrigir a conduta dela, é
ela que acaba por o salvar (ou é um salvamento mútuo), e ao tentar
compreendê-la enterra o resto, esquece Júlia, esquece o Furadouro.
Ela, que não compreende juras de amor e, ele, escravo eterno da
paixão, sentem-se seduzidos pela diferença, pela barreira das
ideologias e das vidas que levam. Ela, a modernidade, ele, o passado.
Os lindíssimos encontros na cabana de palha, a teimosia dos dois, as
discussões, os desatinos e as más-línguas. O final que os encerra,
com o alívio de poder sobreviver, apesar de tudo. Risos de
resignação? Talvez... se calhar é preciso viver mais uns anos para
perceber se sim ou se não.
Tentada foi a
génese dos acontecimentos e das intenções do filme, pela minha
parte. Só que há mais coisas, porque nem só de forças naturais se
alimenta o filme. Que dizer dos rituais quase em cumprimento fúnebre?
Das pescas, das cantigas e das marchas que parecem feitas com um
grande pesar e uma grande saudade? E do interlúdio musical que leva
Júlia a perder os sentidos, quase arrebatamento de culpa e angústia.
Pode ser que o filme não dê muitas respostas mas diz-nos, pelo
menos, que os tempos já foram assim, que já houve homens que
lutavam contra a Natureza com os braços. Desprotegidos. Homens que
ganhavam só para o pão e que continuavam. Que é agora o Furadouro?
Mudar
de Vida parece
uma antologia de últimos momentos: para o amor, para a pesca, para
as tradições e para a vida. Um monumento à sagacidade e agudeza de
toda esta gente. Despeço-me, deixando dois poemas que me parecem
fazer algum sentido, um do Man'yoshu
e
outro do Kokinshu
(duas antologias poéticas japonesas):
“If
this were a world
in which there were no such thing
as false promises,
how great would be my
delight
as I listened to your
words”
“I long for a way
to recapture bygone times,
to see the palace
of which I but hear rumors
noisy as a rushing
stream”