sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Rocha e o Furadouro




(mais um texto meu na CINERGIA)

He said come wander with me, love. Come wander with me.. Away from this sad world.. Come wander with me.. Bonnie Beecher, em 

Come Wander with me, canção e episódio da Twilight Zone 

Mudar de Vida é o segundo filme de Paulo Rocha. Podia ter sido o primeiro, porque era um projecto já antigo mas que não aconteceu, na altura. Só uns anos mais tarde, depois de estrear Verdes Anos, é que tomou forma. Portanto talvez não faça grande sentido falar na transição oriental na carreira de Rocha em Mudar de Vida, não só por isso mas também porque a admiração pelo oriente era já antiga e em Verdes Anos se calhar até já se sente. Mas como é de Mudar de Vida que aqui nos ocupamos, ocupemo-nos disso mesmo. Para acabar com a questão, a paisagem do filme é capaz de nos remeter para o “oriente” e há uma consciência disso por trás da câmara (ler “na forma de enquadrar”). Os barcos no rio, a vegetação, a neblina. Enfim, pode-se também dizer que o próprio conflito remete para, por exemplo, um Ugetsu Monogatari. Para Sunrise ou City Girl, também, que são “ocidente”. Mas como é injusto para este filme entrar em comparações destas (e nem por serem dois dos maiores artistas do séc. XX, mais por Mizoguchi e Murnau terem na altura desses filmes as formas resolvidas, era já um olhar sereno sobre as coisas; Rocha começava, ainda, o olhar era jovem) escrevo sobre o que ele conta (e conta tanta coisa).

Adelino regressa à terra natal depois de anos sem dar ou ouvir notícias. O tempo permite que “os seus” façam as suas vidas, que a sua prometida, Júlia, se torne sua cunhada, que o mar avance sobre a areia e sobre as casas e que ele pouco reconheça do Furadouro. Depois de se habituar à mudança, transita, e a paisagem acompanha-o (repararão que a primeira metade do filme é “mar” e a segunda, “rio”, que Adelino percorre muito discretamente essa transição, além de chegar a dizer “eu dantes gostava do mar e agora gosto do rio”, a dada altura no filme). Paulo Rocha disse que o mote do filme foi registar esse mundo antes de desaparecer e a transição está registada e colada às personagens como dispositivo cénico. Se o mar varreu as memórias, é preciso procurar outras – é preciso mudar de vida - e aí entra Albertina, a aparição angelical do filme (anjo da guarda, salvação, fabulosa Isabel Ruth). Cruzam destinos numa capela, pormenor que não me parece inocente, ele lá para meditar e ela para pilhar as esmolas. Se é ele que começa a tentar corrigir a conduta dela, é ela que acaba por o salvar (ou é um salvamento mútuo), e ao tentar compreendê-la enterra o resto, esquece Júlia, esquece o Furadouro. Ela, que não compreende juras de amor e, ele, escravo eterno da paixão, sentem-se seduzidos pela diferença, pela barreira das ideologias e das vidas que levam. Ela, a modernidade, ele, o passado. Os lindíssimos encontros na cabana de palha, a teimosia dos dois, as discussões, os desatinos e as más-línguas. O final que os encerra, com o alívio de poder sobreviver, apesar de tudo. Risos de resignação? Talvez... se calhar é preciso viver mais uns anos para perceber se sim ou se não.

 Tentada foi a génese dos acontecimentos e das intenções do filme, pela minha parte. Só que há mais coisas, porque nem só de forças naturais se alimenta o filme. Que dizer dos rituais quase em cumprimento fúnebre? Das pescas, das cantigas e das marchas que parecem feitas com um grande pesar e uma grande saudade? E do interlúdio musical que leva Júlia a perder os sentidos, quase arrebatamento de culpa e angústia. Pode ser que o filme não dê muitas respostas mas diz-nos, pelo menos, que os tempos já foram assim, que já houve homens que lutavam contra a Natureza com os braços. Desprotegidos. Homens que ganhavam só para o pão e que continuavam. Que é agora o Furadouro? Mudar de Vida parece uma antologia de últimos momentos: para o amor, para a pesca, para as tradições e para a vida. Um monumento à sagacidade e agudeza de toda esta gente. Despeço-me, deixando dois poemas que me parecem fazer algum sentido, um do Man'yoshu e outro do Kokinshu (duas antologias poéticas japonesas):

“If this were a world 
 in which there were no such thing 
 as false promises, 
 how great would be my delight 
 as I listened to your words”

 “I long for a way
 to recapture bygone times,
 to see the palace
 of which I but hear rumors
 noisy as a rushing stream”