domingo, 2 de setembro de 2012
sexta-feira, 31 de agosto de 2012
Rocha e o Furadouro
(mais um texto meu na CINERGIA)
He
said come wander with me, love. Come wander with me.. Away from
this sad world.. Come wander with me..
Bonnie Beecher, em
Come
Wander with me,
canção e episódio da Twilight
Zone
Mudar
de Vida é
o segundo filme de Paulo Rocha. Podia ter sido o primeiro, porque era
um projecto já antigo mas que não aconteceu, na altura. Só uns
anos mais tarde, depois de estrear Verdes
Anos,
é que tomou forma. Portanto talvez não faça grande sentido falar
na transição oriental
na
carreira de Rocha em Mudar
de Vida,
não só por isso mas também porque a admiração pelo oriente
era
já antiga e em Verdes
Anos
se calhar até já se sente. Mas como é de Mudar
de Vida que
aqui nos ocupamos, ocupemo-nos disso mesmo. Para acabar com a
questão, a paisagem do filme é capaz de nos remeter para o
“oriente” e há uma consciência disso por trás da câmara (ler
“na forma de enquadrar”). Os barcos no rio, a vegetação, a
neblina. Enfim, pode-se também dizer que o próprio conflito remete
para, por exemplo, um Ugetsu
Monogatari.
Para Sunrise
ou
City
Girl,
também, que são “ocidente”. Mas como é injusto para este filme
entrar em comparações destas (e nem por serem dois dos maiores
artistas do séc. XX, mais por Mizoguchi e Murnau terem na altura
desses filmes as formas resolvidas, era já um olhar sereno sobre as
coisas; Rocha começava, ainda, o olhar era jovem) escrevo sobre o
que ele conta (e conta tanta coisa).
Adelino
regressa à terra natal depois de anos sem dar ou ouvir notícias. O
tempo permite que “os seus” façam as suas vidas, que a sua
prometida, Júlia, se torne sua cunhada, que o mar avance sobre a
areia e sobre as casas e que ele pouco reconheça do Furadouro. Depois de se habituar à mudança, transita, e a paisagem acompanha-o
(repararão que a primeira metade do filme é “mar” e a segunda,
“rio”, que Adelino percorre muito discretamente essa transição,
além de chegar a dizer “eu
dantes gostava do mar e agora gosto do rio”,
a dada altura no filme). Paulo Rocha disse que o mote do filme foi
registar esse mundo antes de desaparecer e a transição está
registada e colada às personagens como dispositivo cénico. Se o mar
varreu as memórias, é preciso procurar outras – é preciso mudar
de vida -
e aí entra Albertina, a aparição angelical do filme (anjo
da guarda, salvação,
fabulosa Isabel Ruth). Cruzam destinos numa capela, pormenor que não
me parece inocente, ele lá para meditar e ela para pilhar as
esmolas. Se é ele que começa a tentar corrigir a conduta dela, é
ela que acaba por o salvar (ou é um salvamento mútuo), e ao tentar
compreendê-la enterra o resto, esquece Júlia, esquece o Furadouro.
Ela, que não compreende juras de amor e, ele, escravo eterno da
paixão, sentem-se seduzidos pela diferença, pela barreira das
ideologias e das vidas que levam. Ela, a modernidade, ele, o passado.
Os lindíssimos encontros na cabana de palha, a teimosia dos dois, as
discussões, os desatinos e as más-línguas. O final que os encerra,
com o alívio de poder sobreviver, apesar de tudo. Risos de
resignação? Talvez... se calhar é preciso viver mais uns anos para
perceber se sim ou se não.
Tentada foi a
génese dos acontecimentos e das intenções do filme, pela minha
parte. Só que há mais coisas, porque nem só de forças naturais se
alimenta o filme. Que dizer dos rituais quase em cumprimento fúnebre?
Das pescas, das cantigas e das marchas que parecem feitas com um
grande pesar e uma grande saudade? E do interlúdio musical que leva
Júlia a perder os sentidos, quase arrebatamento de culpa e angústia.
Pode ser que o filme não dê muitas respostas mas diz-nos, pelo
menos, que os tempos já foram assim, que já houve homens que
lutavam contra a Natureza com os braços. Desprotegidos. Homens que
ganhavam só para o pão e que continuavam. Que é agora o Furadouro?
Mudar
de Vida parece
uma antologia de últimos momentos: para o amor, para a pesca, para
as tradições e para a vida. Um monumento à sagacidade e agudeza de
toda esta gente. Despeço-me, deixando dois poemas que me parecem
fazer algum sentido, um do Man'yoshu
e
outro do Kokinshu
(duas antologias poéticas japonesas):
“If
this were a world
in which there were no such thing
as false promises,
how great would be my
delight
as I listened to your
words”
“I long for a way
to recapture bygone times,
to see the palace
of which I but hear rumors
noisy as a rushing
stream”
Have a great ride, Jim*
“What
if that means something? The universe is not “chaos”, it's
connection. Life reaches out for life. That's what we're born for,
isn't it? To stand on a new world and look beyond it, to the next
one. It's who we are.”
Monólogo do
filme
Não
penso que Mission
to Mars se
possa considerar um blockbuster,
no entanto tenho a certeza que foi feito de maneira a cumprir esse
alcance. Ou seja, sabendo que tinha o mundo como público. De Palma
tomou como modelo
2001
de Stanley Kubrick mas, no final, fica-lhe a dever muito pouco. E
digo “fica-lhe a dever muito pouco” porque em todo o caso é um
filme de Brian de Palma e o ter sido feito para um “grande público”
ou parecer um remake (subversivo) de A
Space Odissey1,
não apagam isso.
Os primeiros
planos contêm já neles os assuntos e temas de um filme.
Mission
to Mars começa
com o lançamento de um foguete de brincar para o céu. A câmara
desce e assistimos a uma festa que parece ser de despedida (há um
cartaz, em segundo plano, que diz BON
VOYAGE MARS ONE!).
Só nos são apresentadas todas as personagens no plano seguinte, mas
o primeiro já prenuncia o resto portanto centremo-nos nele: começa
tudo na infância. Ser astronauta é sonho de criança, imaginar
viagens pelos céus e pelo espaço, a aventura de tudo isso, porque
só depois é que se procura o dar significado às coisas; o amor.
Tema pilar de todo o filme que mais interessante é por não se
limitar ao amor “matrimonial”, não, é também pelo
conhecimento, pelos amigos e pelo desconhecido.
É
quando nos é apresentada a personagem de Jim McConell que percebemos
que Mission
to Mars é
também um filme sobre perda. Perda um bocado de tudo mas de fé,
principalmente. Fé essa que é restaurada pelo cosmos.
E
quando assistimos ao salto temporal da caixa de areia onde brincam os
miúdos para Marte, além de vermos que Mission
to Mars é
um filme sobre Jim, que este é o herói desta história, todas as
outras questões se conjugam. Ao pôr o pé na areia, Jim recorda que
já sonhou ali, em miúdo, com o espaço, que já teve uma mulher e
que quer significado para as dúvidas. Que lhe falta qualquer coisa,
que talvez Marte seja a resposta. É além disso a elipse que já
2001
tinha.
Não tão longe no tempo mas mais longe um bocado no espaço2.
No filme de Kubrick pode-se dizer tratar-se de uma questão
histórica, no de De Palma uma questão de estória. Quem quis (e
quem ainda quer) mal a este filme, disse que era uma versão light
de
2001
e
Solaris,
eu digo que o filme dá forma ao que nos outros dois era envolto em
enigmas. Fez-se o exercício narrativo de forjar uma explicação
para a vida, mas se ela parece infantil ou ridícula isso só abona
em favor do filme, além do deslumbramento da descoberta estar lá e
me parecer tão belo como o dos filmes de Kubrick e Tarkovski.
Não
é costume de quem estuda e critica filmes querer aprofundar no que
parece auto-explicar-se. Mas Mission
to Mars não
se auto-explica. O final do filme parece-me rodeado de mistérios.
Porque Jim não sabe para onde vai, é a fé que o move, foi o ter
ouvido a mulher a dizer que tínhamos todos nascido para ir para um
mundo novo e olhar além dele, para o próximo. Ninguém sabe para
onde foi ele e o derradeiro segredo foi-lhe reservado. Ou outra
coisa. Ter Mission
to Mars sido
muito enxovalhado por altura da estreia diz mais sobre nós do que
sobre o filme, propriamente. “Acreditar” não é muito coisa dos
tempos que correm, que ser deslumbrado com uma pepsi
numa
mão e pipocas na outra não cai lá muito bem. Talvez. Mas quem viu
a alegria nas caras de Jim (Gary Sinise), Luke (Don Cheadle) e Terri
(Connie Nielsen) no momento daquela revelação não pode deixar de o
fazer.
Have a
great ride, Jim!
1.
De
Palma fala também de Destination
Moon
de Irving Pichel como inspiração para este filme.
segunda-feira, 16 de julho de 2012
O que é sobreviver?
O filme é Street of Shame (ou Akasen chitai, se se quiser ser mais preciso), a última opus de Kenji Mizoguchi, sagradíssimo cineasta. Como em todos os cineastas sagrados (pense-se em Ozu, McCarey, Ford, Dreyer, Tourneur, Rohmer, Bresson e poucos mais), há uma concretização (a que vai do conteúdo à forma) que se resume ao essencial e que esbate o acessório, totalmente. A saber, uma rua: núcleo e buraco negro de toda a trama e enquadramentos, em narrativa cíclica, permite o controlo absoluto das escalas e do espaço, tudo depurado a prego e martelo. Parafraseando Miguel Ângelo, como se faz uma escultura? É só retirar do bloco de mármore tudo o que não é necessário.
Para não haver confusões, não é de uma crítica política e social ou de um filme-denúncia de que aqui nos ocupamos. Não, há um voto de fidelidade assumido desde o princípio em revelar aquele mundo pelo que é, ou seja, com a consciência de que não pode haver nada que facilite a concepção do que é uma mulher que vende o corpo por dinheiro. E é aqui que o espírito batalha por tentar encontrar uma saída fácil para esse dilema, o da vergonha. Como o filme não oferece essa saída, batalhamos connosco próprios por não tecer juízos sobre este estilo de vida. É estruturalmente documental e os juízos estão todos na nossa cabeça. Quando acaba, percebemos que nos foi acabada de dar uma lição em humanismo, e foi tudo tão rápido que queremos perceber como é que isso foi feito.
Cada plano conta uma história
Não me ocuparei de todos eles, mas o que há de mais salutar, é a economia e a precisão dos planos do realizador japonês. A casa é "descrita" minuciosamente, câmara sempre no sítio certo criando o reconhecimento por sinais, até à envolvência: as portas, as escadas, a porta principal, os bares, a rua, os quartos. Complicando e desenvolvendo, o bairro e a casa são portos de abrigo e a luz domina, ao passo que os exteriores mais afastados são tingidos pela vergonha e pelos traumas familiares. Basta lembrar que é em terreno seguro que Mickey expulsa o pai, numa sequência de pura retórica narrativa mas que se nos é revelada como uma brisa: entra o pai, não duvidamos que guiado pelas melhores intenções, está cabisbaixo e abatido; pai e filha discutem e estabelece-se qual é o conflito, ele não a quer ali; e descobre-se o motivo da vergonha do pai, é uma questão de à-vontade social ("as pessoas andam a falar"); e descobre-se o motivo da escolha de vida da filha, é o pai e a sua vida por trás das aparências, o que não é de todo descabido porque toda a sequência se funda pelo jogo das aparências, torcemos primeiro pelo pai, até sermos esbofeteados com aquele horrível e embaraçoso plano-conjunto que enche o pai de vergonha e o faz sair de rompante pela casa, expulso pela filha, para não mais voltar e vermos em Mickey humanidade (com o belo e o horrível) como dantes não víamos. Cinema é uma questão de gerir quem sai, e quando, de plano.. Batalha das e pelas aparências, as do filme e as da rodagem - as coisas têm de parecer ser o que são mas tem de haver espaço para outros "pareceres"...
Mas ainda só se viu isto e portanto não se viu nada. Há a vergonha do filho que insulta a mãe em várias ocasiões, o marido pobre com a filha às costas e o cliente explorado.
Na penúltima cena, antes de voltar tudo à normalidade e o ciclo se fechar com "sangue novo" para substituir o "velho", há um plano insuportável: onde Mizoguchi nos mostra o que não podemos ver, o proibido, a privacidade. A morte de Yasumi. A duração do plano tem um peso intrínseco, cada segundo dói. E o que dói mais é ver a vida continuar. Aquela vida. Que não é só a vida de quem faz aquilo e ali trabalha, mas a vida de quem se esforça por levar dinheiro e comida para casa. De quem que, mais que viver, tem de sobreviver.
Obra-prima máxima dos anos 50.
Na penúltima cena, antes de voltar tudo à normalidade e o ciclo se fechar com "sangue novo" para substituir o "velho", há um plano insuportável: onde Mizoguchi nos mostra o que não podemos ver, o proibido, a privacidade. A morte de Yasumi. A duração do plano tem um peso intrínseco, cada segundo dói. E o que dói mais é ver a vida continuar. Aquela vida. Que não é só a vida de quem faz aquilo e ali trabalha, mas a vida de quem se esforça por levar dinheiro e comida para casa. De quem que, mais que viver, tem de sobreviver.
Obra-prima máxima dos anos 50.
quinta-feira, 17 de maio de 2012
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