segunda-feira, 16 de julho de 2012

Abismo...






























O que é sobreviver?


O filme é Street of Shame (ou Akasen chitai, se se quiser ser mais preciso), a última opus de Kenji Mizoguchi, sagradíssimo cineasta. Como em todos os cineastas sagrados (pense-se em Ozu, McCarey, Ford, Dreyer, Tourneur, Rohmer, Bresson e poucos mais), há uma concretização (a que vai do conteúdo à forma) que se resume ao essencial e que esbate o acessório, totalmente. A saber, uma rua: núcleo e buraco negro de toda a trama e enquadramentos, em narrativa cíclica, permite o controlo absoluto das escalas e do espaço, tudo depurado a prego e martelo. Parafraseando Miguel Ângelo, como se faz uma escultura? É só retirar do bloco de mármore tudo o que não é necessário.

Para não haver confusões, não é de uma crítica política e social ou de um filme-denúncia de que aqui nos ocupamos. Não, há um voto de fidelidade assumido desde o princípio em revelar aquele mundo pelo que é, ou seja, com a consciência de que não pode haver nada que facilite a concepção do que é uma mulher que vende o corpo por dinheiro. E é aqui que o espírito batalha por tentar encontrar uma saída fácil para esse dilema, o da vergonha. Como o filme não oferece essa saída, batalhamos connosco próprios por não tecer juízos sobre este estilo de vida. É estruturalmente documental e os juízos estão todos na nossa cabeça. Quando acaba, percebemos que nos foi acabada de dar uma lição em humanismo, e foi tudo tão rápido que queremos perceber como é que isso foi feito.

Cada plano conta uma história

Não me ocuparei de todos eles, mas o que há de mais salutar, é a economia e a precisão dos planos do realizador japonês. A casa é "descrita" minuciosamente, câmara sempre no sítio certo criando o reconhecimento por sinais, até à envolvência: as portas, as escadas, a porta principal, os bares, a rua, os quartos. Complicando e desenvolvendo, o bairro e a casa são portos de abrigo e a luz domina, ao passo que os exteriores mais afastados são tingidos pela vergonha e pelos traumas familiares. Basta lembrar que é em terreno seguro que Mickey expulsa o pai, numa sequência de pura retórica narrativa mas que se nos é revelada como uma brisa: entra o pai, não duvidamos que guiado pelas melhores intenções, está cabisbaixo e abatido; pai e filha discutem e estabelece-se qual é o conflito, ele não a quer ali; e descobre-se o motivo da vergonha do pai, é uma questão de à-vontade social ("as pessoas andam a falar"); e descobre-se o motivo da escolha de vida da filha, é o pai e a sua vida por trás das aparências, o que não é de todo descabido porque toda a sequência se funda pelo jogo das aparências, torcemos primeiro pelo pai, até sermos esbofeteados com aquele horrível e embaraçoso plano-conjunto que enche o pai de vergonha e o faz sair de rompante pela casa, expulso pela filha, para não mais voltar e vermos em Mickey humanidade (com o belo e o horrível) como dantes não víamos. Cinema é uma questão de gerir quem sai, e quando, de plano.. Batalha das e pelas aparências, as do filme e as da rodagem - as coisas têm de parecer ser o que são mas tem de haver espaço para outros "pareceres"...

Mas ainda só se viu isto e portanto não se viu nada. Há a vergonha do filho que insulta a mãe em várias ocasiões, o marido pobre com a filha às costas e o cliente explorado.


Na penúltima cena, antes de voltar tudo à normalidade e o ciclo se fechar com "sangue novo" para substituir o "velho", há um plano insuportável: onde Mizoguchi nos mostra o que não podemos ver, o proibido, a privacidade. A morte de Yasumi. A duração do plano tem um peso intrínseco, cada segundo dói. E o que dói mais é ver a vida continuar. Aquela vida. Que não é só a vida de quem faz aquilo e ali trabalha, mas a vida de quem se esforça por levar dinheiro e comida para casa. De quem que, mais que viver, tem de sobreviver.


Obra-prima máxima dos anos 50.